Confira na entrevista produzida pelo Banco de Informações da Rede Cultura de Comunicação do Pará
Por Denílson d'Almeida / Edição: Rosane Brito
P - Para a Antropologia, qual a importância do ciberespaço nas relações interétnicas e interculturais que possibilitam a conexão entre regiões e estados?
Eneida Assis - A comunicação é a base da vida social e para que ela se efetive usamos as palavras, gestos, escrita, cores que são dotados de significados e compartilhados por aqueles que conhecem esses símbolos e o que eles representam. O ciberespaço proporciona outra forma de comunicação, inaugurando novas linguagens que passam a ser "faladas" por interlocutores que não estão ao alcance da vista, no horizonte de quem fala, mas que são presentes e reais. É uma nova realidade, a virtual, que leva as pessoas para além das fronteiras geográficas e políticas, fazendo com que elas estejam "plugadas", isto é, em conexão. Os povos indígenas do mundo tem se beneficiado muito da internet, pois o ciberespaço lhes proporciona conhecer outros iguais a eles, ou diferentes deles. Quando nos defrontamos com a diferença, somos levados a pensar em nós, no quanto também somos diferentes, peculiares, embora também múltiplos - cultural, linguística e historicamente.
P - Como as populações indígenas tem se apropriado desta tecnologia?
Eneida Assis - O computador é a nova ferramenta desejada pelos povos indígenas, porque eles sabem do que ela é capaz. No passado, esses povos quando eram contatados queriam ferramentas como machados, terçados, enxós, além das panelas. As ferramentas de cultivo proporcionavam a essas sociedades a otimização de suas roças, o que significava colheitas em tempo mais rápido e com menor esforço. Quando os indígenas não eram atendidos, surrupiavam daqueles que invadiam seus territórios. Hoje, o computador é o principal meio de contato com os 'parentes', mas também é o meio pelo qual eles podem registrar suas histórias, músicas, seu cotidiano, e que, somado a outras mídias, revolucionou o mundo indígena. Mas, para que tudo isso aconteça, eles precisam de educação escolar e treinamento específico, daí o acesso à informática ser uma nova bandeira de luta.
P - Nas últimas décadas, diversas práticas e conhecimentos de povos e comunidades tradicionais – indígenas, seringueiros, ribeirinhos – vem se tornando objeto de interesse e adquirindo projeção extra-local, emergindo ao mesmo tempo como "emblemas" de identidades específicas. A troca de conhecimentos pelas tribos por meio da internet não colocaria a identidade das etnias em risco?
Eneida Assis - Absolutamente. A identidade é algo que se constrói na relação com o outro e, neste caso, um povo indígena começa a ter oportunidade de discutir, ou mesmo conversar, sobre assuntos que lhes são próprios e o "ter com quem falar" começa a ser reconhecido nem tanto como exótico, mas como alguém que pensa o mundo de forma diferente. Por exemplo, há décadas atrás havia um princípio muito repetido que era: "o que é bom para os americanos é bom para o Brasil". O tempo provou que isso não é verdade e a nossa história e cultura forjaram a nossa forma de ser, o que permite que sejamos o que somos e tendo, parafraseando Roberto da Matta, o "jeitinho brasileiro".
P – O ciberespaço permite o consumo de diferentes plataformas online. O que leva as pessoas a investirem mais em algumas dessas plataformas do que em outras? Necessidade, acessibilidade, usabilidade ou moda? Surgem de fato, a partir daí, novas interações e mudanças sociais?
Eneida Assis - Quando alguém cria um perfil cria também uma imagem, uma ideia de si. Nos sites de relacionamento, essa imagem busca favorecer o que o criador intenta, mas para isso precisa estar atento para o que a rede oferece, como valor e acessibilidade. Porém, ter o próprio site ou blog pode trazer prestígio ou mesmo dinheiro, depende do que se quer vender.
Os povos indígenas estão atentos para os serviços que a rede pode oferecer e as possibilidades. Veja essa maravilha que é o google. Observei essa descoberta quando um determinado grupo queria saber a respeito de uma festa já esquecida pelos mais jovens e, ao acessar o site, encontrou a informação com descrições sobre o processo da festa, as comidas e o modo de prepará-las.
P - Quais experiências e resultados do processo de inclusão digital vivido por grupos indígenas a senhora destacaria?
Eneida Assis - Os indígenas tem uma capacidade especial para lidar com maquinários, tratores, carros, e só não mexem mais com motores porque o preparo técnico nem sempre é acessível. Essas habilidades parecem ter relação com a destreza das mãos requisitadas em seus serviços tradicionais, onde a percepção, o uso dos sentidos assim o exigem, mas isso também pode mudar. A inclusão digital dá um novo rumo aos povos que a ela tem acesso, especialmente por facilitar a comunicação entre as aldeias e outros povos. É uma espécie de espelho onde podem se ver e ver as suas palavras escritas. Estão saindo livros, cartilhas, músicas, desenhos feitos por eles mesmos, sem intermediários, e isso é a democratização da comunicação.
P - Quantas tribos/etnias tem acesso à inclusão digital e como elas chegam até essa tecnologia?
Eneida Assis - A inclusão digital tem chegado aos povos indígenas de várias formas: via projetos de organizações não governamentais, projetos de pesquisadores e também governamentais, em especial através das escolas. A chegada de computadores exige a instalação de energia elétrica ou de placas solares, treinamentos, acesso ao inglês de computação, enfim, novos horizontes. Na Amazônia já existem serviços entre os Waiãpi (Amapá) e há promessa de instalação de dois pequenos laboratórios de informática em duas aldeias Tembé, do Gurupi, assim como na aldeia Mapuera, dos Wai Wai, no Trombetas. Porém, não se pode dizer que funcione no modelo dos "Ìndios on line" (que é um portal intercultural), como se observa entre os indígenas do Nordeste, e isso é compreensível porque as condições socioculturais e ambientais são muito diferentes.
P - O ciberespaço teve implicações sócio-econômicas e político-organizacionais nas comunidades indígenas?
Eneida Assis - Como disse anteriormente, apesar desse acesso ter um grau diferente do que se observa entre aqueles que já participam de projetos do tipo do "Redes da Floresta" e outros similares, a entrada do computador na vida dessas comunidades provoca mudanças. Positivas? Sim, mas também podem ocorrer os malefícios que são nossos conhecidos e similares à chegada da TV, do VHS e dos CDs. São os riscos de se estar no mundo...
P – O diálogo e a troca de conhecimentos entre as comunidades indígenas acontecem apenas no portal "Índios On Line", ou existem outros mais diretamente relacionados a esse tipo de intercâmbio cultural?
Eneida Assis - Existem outros, como por exemplo a Rede Grumim, que incentiva a pesquisa e a consequente formação de pesquisadores indígenas, documentaristas.
P - O ciberespaço tem garantido o reconhecimento dos indígenas pela sociedade em geral ou é ainda algo restrito a eles?
Eneida Assis - Os povos indígenas tem, nas últimas décadas, lutado contra as diferentes formas de opressão impingidas pela sociedade mais ampla. É uma luta em que não estão sozinhos, mas em conjunto com minorias étnicas do mundo inteiro. O reconhecimento é condição fundamental para a participação nas arenas políticas e sociais, daí a luta para que isso aconteça. O ciberespaço pode ser visto como um instrumento de luta na divulgação, denúncia e propagação das demandas desses povos.
P – É possível fazer um balanço resumido da pesquisa acadêmica envolvendo os indígenas e ciberespaço?
Eneida Assis - A pesquisa sobre a entrada dos indígenas no ciberespaço começou com a discussão sobre o papel da radiofonia nas aldeias e os prejuízos, quando o sistema de comunicação ficou sob a responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Os rádios pertenciam anteriormente aos postos da Fundação Nacional do Índio (Funai). O isolamento em que essas populações vivem aumenta a exclusão social, cultural e principalmente política. A chegada da TV, das filmadoras, do DVD, do celular começou a mudar a vida desses povos. Nossa pesquisa se estendeu ao levantamento dessas mudanças que mais recentemente ocorreram em função das antenas parabólicas. Os computadores chegaram depois e completaram o ciclo da influência das mídias. O Alexandre Dias, à época bolsista do projeto por mim coordenado, ficou encarregado da pesquisa sobre as redes indígenas existentes, o que resultou em uma monografia de graduação em Ciências Sociais, e, a partir daí, prosseguimos reunindo informações e contatando aqueles indígenas que já estavam desenvolvendo tarefas nessas redes. Durante o Fórum Social Mundial, organizamos um grupo de trabalho para discutir o tema onde estiveram presentes membros de vários grupos que usam o ciberespaço como locus de luta, divulgação e comunicação.
Entrevista com Eneida Assis que é licenciada em História (UFPA), mestre em Antropologia Social pela UNB, doutora em Ciência Política pelo IUPERJ-RJ e coordenadora do GEPI-Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas, da UFPA.
Gostei, muito bom!
ResponderExcluirobrigado, moço!
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